Sobre livros e solidão

Uma nova parceria com a editora Draco e a exposição “Auta para Todos”.

O celular na mão o tempo inteiro muitas vezes nos dá a sensação de que estamos conectados a uma grande e universal rede afetuosa, um fio intrincado de relacionamentos, seguidores, amizades e bons contatos. Parar a vida para ler um livro, no entanto, é o exato oposto desta sensação de conexão urgente e imediata: você se recolhe num recanto solitário para encarar um pedaço de papel encadernado com uma história que, durante aquela leitura comprida, é uma experiência apenas sua. Consigo entender a lógica que reside no medo crescente que a minha geração estabeleceu com os livros e a leitura, não é fácil encarar a própria companhia por muito tempo.

Hoje é possível passar horas escondido dentro de casa, sem necessariamente se sentir sozinho, graças aos tuítes, comentários, curtidas e todas estas dinâmicas interativas cronicamente online. Fazer arte e publicá-la na internet é muito satisfatório devido a todo o oba-oba promovido pelos algoritmos e engajamentos. Por outro lado, fazer livros, assim como lê-los, é uma atividade ainda mais dependente do isolamento: escrever, ilustrar, compôr palavras e diagramação, todas são atividades muito introspectivas e concentradas na solidão do ateliê.

No último mês estou envolvido bem ativamente em dois trabalhos paralelos, ambos que envolvem uma relação com livros e com a feitura deles:

1) Passo os dias agarrado no lápis e no papel, sozinho dentro do ateliê, ilustrando um quadrinho em parceria com a editora Draco. É uma história muito interessante e um desafio consideravelmente maior que as últimas parcerias que estabeleci com a editora (esta já é minha quarta parceria com eles). As páginas estão ficando prontas a passos de tartaruga mas isso se deve muito ao empenho que estou colocando neste trabalho e à compreensão da equipe do projeto que compreende muito bem como funciona este processo de se ilustrar um quadrinho inteiro, com cuidado e esmero. Por enquanto não devo falar nada sobre este projeto, mas garanto que vocês vão saber sobre ele em breve e está ficando lindo!

2) Em paralelo, a convite do amigo Alexandre Gurgel, estou atuando como mediador artístico e educativo da exposição “Auta para Todos” que acontece no Salão Nobre da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. Esta é a maior exposição sobre a vida e a obra da grande poetisa macaibense Auta de Souza, uma das maiores escritoras simbolistas do Brasil. De segunda a sexta-feira, das 8h às 14h, até o dia 19 de abril, passo os dias também sozinho, dentro do espaço expositivo, aguardando ansiosamente pela companhia do público que vem assistir à exposição.

Uma ilustração direto das artes originais do novo quadrinho em parceria com a Editora Draco.
Exposição “Auta para Todos” em cartaz na ALRN até o dia 19 de abril

Estes dois trabalhos envolvem livros, uma das minhas maiores paixões e um tema que, ao lado do Cinema, permeia maior parte da minha carreira como artista. Sigo o raciocínio: trabalhar com livros parece ser um processo solitário e isolante. A própria Auta de Souza teve uma vida solitária, cercada de livros, melancolia e perdas, uma profundidade muito refletida nos seus escritos. Fico pensando como seria sua vida se tivesse nascido no início do século XXI e não no final do XIX. Será que teria uma conta no instagram? Ou postaria suas poesias no facebook? Seria menos triste?

Em contraponto, reflito também sobre as condições que me fizeram parar aqui, no contexto de profissionalmente responsável por estes dois projetos:

1) Minha parceria com a Draco começou com minha participação no Festival Internacional de Quadrinhos, em 2022. Passar uma semana rodeado de quadrinistas, ilustradores, colecionadores e escritores de todo o Brasil é, na verdade, a experiência menos solitária do mundo. Tanto pelo fato de que ninguém sabe sair do evento e ir dormir em seus quartos de hotel sem antes tentar virar a madrugada tomando cerveja nas beiradas de calçadas do centro de Belo Horizonte, quanto pelo fato de que um evento como este é uma semana inteira de conversê sobre como é ralado trabalhar com livros e quadrinhos no Brasil. E assim, na adversidade, há um senso de que estamos todos no mesmo barco, tapando os buracos que o afundam.

2) Sobre a exposição de Auta, minha parceria com o Alexandre Gurgel começou ano passado, quando o Sesc me deixou responsável pela mediação da belíssima exposição do seu acervo de gravuras na Galeria do Sesc/RN. Depois do sucesso de público da exposição do Sesc, o Alexandre me convidou e incubiu a atuar com a mediação artística e educativa da exposição “Auta para Todos”. Apesar da aparente solidão da função de mediar o público e o acervo de uma exposição de arte, literatura e história, a exposição está tendo uma ótima visitação e o tempo que passei sozinho esta semana não se sobrepôs à frequência do público. As reações à exposição são diversas, mas todas envolvem um senso de comunhão e regionalismo, a identificação pessoal e artística com Auta, um dos nomes maiores da cultura norteriograndese.

Nos últimos anos, entendemos e percebemos que quanto mais cronicamente online ficamos, menos relações duradouras se estabelecem. Li recentemente (no xtuiter kkk) uma discussão muito interessante sobre como um artista não precisa de milhares de seguidores para ter um bom alcance do seu trabalho. Os anos passam e noto que esta percepção está mais do que correta. Nenhuma das minhas relações de trabalho e os colegas que conheci no caminho se deveram a qualquer sucesso nas redes sociais. Por outro lado, foram todos relacionamentos motivados pela paixão dilacerante, mórbida e incurável por livros.

Quanto mais leio, produzo e trabalho com livros e quadrinhos, mais gente incrível conheço. Quanto mais estudo e aprendo sobre a vida dos que viveram rodeados de livros e já se foram, mais entendo que a literatura, na verdade, reúne pessoas. Livros não têm nada a ver com solidão.

Fazer Arte com os dentes escovados

Sobre arte, magia e rituais

Dez anos atrás, motivado por um trabalho de uma disciplina do curso de Artes Visuais, comecei a estudar tarô. Na época, meu interesse era por semiótica e eu entendia o tarô como uma ferramenta simbolicamente riquíssima. Portanto, o trabalho a que me propus, inserido em um contexto acadêmico e com a cabeça recheada de conceitos de crítica genética, era desenvolver um baralho de tarô com meu estilo artístico, com peculiar atenção aos símbolos, e escrever um artigo sobre o processo.

O baralho nunca ficou pronto, o artigo também não. Meu interesse por semiótica e crítica genética passeou por caminhos mais brandos e intelectualmente formais… mas estudar tarô… me abriu a cabeça para caminhos menos objetivos de pensamento artístico.

Normal. Até Jung, famoso psicanalista, discutia com seu famoso predecessor sobre o papel da intuição no procedimento científico. E eu estava, de fato, muito inserido na ciência da pesquisa em Arte. Foi a partir desta não completude de um trabalho e da percepção de que eu tinha em mãos um material que não poderia ser absorvido de forma inteiramente pragmática, que fui ampliando meus conhecimentos sobre a relação entre arte e magia e, eventualmente, elaborei meus próprios rituais.

Rituais, todos temos. De vida, o meu é acordar, tomar um banho demorado enquanto medito com a cabeça debaixo d’água. Segue-se de preparar um café coado e comer alguma coisa para livrar do mau-humor. Sem este passo-a-passo, o resto do dia se escorre completamente desorientado. Para fazer arte, até pouco tempo atrás, meu único ritual era estar de dentes escovados. Sim, ainda hoje eu não sei pegar muito bem num lápis para desenhar ou num pincél para pintar ou até mesmo numa caneta para escrever sem estar com os dentes devidamente escovados.

Alguns rituais não fazem sentido fora da própria cabeça e outros te prendem em situações peculiares que mais te tiram a liberdade do que te organizam o juízo. A última década foi de criar meus próprios rituais, esgotá-los e então flexibilizá-los e substituí-los por novos e mais leves/livres.

Toda magia consiste em manipular a natureza para alcançar um estado de consciência ideal. Isso serve para o processo de infusão de folhas secas em água quente em prol de um cházinho de boldo para aliviar dor de estômago, até o processo de manipular terra úmida e assá-la em prol de se obter uma bela escultura capaz de nos causar todo tipo de sentimentos. A folha de boldo, lá no canto dela, não cura dor de estômago. Assim como a argila no pé do mangue.

Quando entendemos o caminho entre a folha de boldo, lá no canto dela, e o conforto no estômago depois do chazinho, chamamos de ciência. Antes de entendermos esse caminho, chamamos de magia ou, em alguns casos, arte. Todo o misticismo acerca da arte e da magia envolve a lógica da menor compreensão: quanto mais compreendemos o efeito de um ritual apenas pelos seus efeitos e menos pela sua lógica, mais mágico ele se torna. É por isso que quando descobrimos os segredos por trás de um truque de mágica dizemos que aquilo ali perdeu a magia.

Pois somos bichos que gostamos de entender, mas gostamos mais ainda de sentir.

Hoje, tudo parece ter perdido a magia. A gente envelhece e as cores dos segredos se desbotam e tudo parece morno, sem mistério. Somos compelidos a entender tudo para se safar de sermos engolidos. Entender tudo é uma forma de sobreviver, mas tem gosto de legume mole, cozido demais. A crocância das coisas geralmente está em afastar a origem do final, deixar curtir o trajeto e alimentar o mistério através da intuição. Enquanto professor de artes, cansei de repetir para centenas de alunos que: certas coisas não são para entender, apenas para sentir.

Arte é o tipo de coisa que eu gosto de entender e sentir. E quando faço, prefiro fazer sentir do que entender.

No começo deste ano, fui a Recife, a passeio, conheci o Intituto Ricardo Brennand e a Oficina de Cerâmica de Francisco Brennand. Dois lugares mágicos onde a explicação das coisas permace escondida e a magia da dúvida paira. Senti mil coisas, principalmente inspiração. Inspirado, elaborei, assim como Brennand e muitos outros artistas, um sigilo magicko para dar sorte aos trabalhos, à arte e à vida neste ano de 2024. Mostrei para minha esposa e ela riu “que ódio, você é muito místico”… ela acha graça quando eu misturo as coisas.

Seguem umas fotos do nosso passeio a Oficina de Francisco Brennand:

O Leão da Primavera

Numa das últimas vezes em que estive com meu padrasto, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro (antes de ele vir a falecer de covid em abril de 2021), passamos de carro por um quiosque, uma mercearia, um estabelecimento que não sei nem como chamar. Uma espécie de mercadinho alojado numa esquininha de Jardim Primavera.

– Pedro, eu não sei como esse lugar ainda se mantém de pé! – O Francisco me dissera. – Faz muito tempo que tá aí. Uns quarenta anos! Uma desgraça duma quitanda escura, sem cliente, não dá em nada. Os mesmos preços do supermercado, às vezes até mais caro. Não sei se eles vendem alguma coisa, não sei como eles sobrevivem, sinceramente.

Eu mesmo sempre fui apreciador de estabelecimentos antigos, tradicionais, daqueles que mudam nada ou pouca coisa e conseguem se manter de pé por muitos anos. Há neles uma energia que almejo, um espírito de constância, uma personalidade que envolve menos ganância e mais juízo sobre o que funciona ou o que não funciona.

Acontece que, visto de fora, o mercadinho parecia ser mais uma construção em homenagem ao congelamento do tempo. A indignação do meu padrasto sobre aquele mistério do mercadinho que não-se-sabe-como-está-de-pé-até-hoje, rondava ao redor de um incômodo, uma incógnita: como é possível que algo não se atualize perante a velocidade frenética das mudanças. Aquilo parecia para mim um reflexo da sua perspectiva sobre a necessidade de viver: uma labuta sobre alcançar, uma esperança sem fim de que as coisas vão (e precisam) crescer, engrandecer, melhorar, que não tá bom do jeito que tá.

Qualquer estilo de vida criativo se alimenta deste tipo de insatisfação como um combustível de ser/fazer. Se cedermos à este tipo de necessidade em caráter de urgência, no entanto, o que corre maior risco de acontecer é o desprezo pela tal constância citada que, afinal, tem seu valor.

Certas fórmulas funcionam, outras nem tanto. Alguns modus operandi deixam de funcionar com o tempo e novas soluções vão surgindo conforme se vive. É preciso estar atento e forte.

Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.

Dizem que foi o Che Guevara, mas eu duvido.
O LEÃO DA PRIMAVERA Ltda., mercadinho em Jardim Primavera, Duque de Caxias/RJ