Fazer Arte com os dentes escovados

Sobre arte, magia e rituais

Dez anos atrás, motivado por um trabalho de uma disciplina do curso de Artes Visuais, comecei a estudar tarô. Na época, meu interesse era por semiótica e eu entendia o tarô como uma ferramenta simbolicamente riquíssima. Portanto, o trabalho a que me propus, inserido em um contexto acadêmico e com a cabeça recheada de conceitos de crítica genética, era desenvolver um baralho de tarô com meu estilo artístico, com peculiar atenção aos símbolos, e escrever um artigo sobre o processo.

O baralho nunca ficou pronto, o artigo também não. Meu interesse por semiótica e crítica genética passeou por caminhos mais brandos e intelectualmente formais… mas estudar tarô… me abriu a cabeça para caminhos menos objetivos de pensamento artístico.

Normal. Até Jung, famoso psicanalista, discutia com seu famoso predecessor sobre o papel da intuição no procedimento científico. E eu estava, de fato, muito inserido na ciência da pesquisa em Arte. Foi a partir desta não completude de um trabalho e da percepção de que eu tinha em mãos um material que não poderia ser absorvido de forma inteiramente pragmática, que fui ampliando meus conhecimentos sobre a relação entre arte e magia e, eventualmente, elaborei meus próprios rituais.

Rituais, todos temos. De vida, o meu é acordar, tomar um banho demorado enquanto medito com a cabeça debaixo d’água. Segue-se de preparar um café coado e comer alguma coisa para livrar do mau-humor. Sem este passo-a-passo, o resto do dia se escorre completamente desorientado. Para fazer arte, até pouco tempo atrás, meu único ritual era estar de dentes escovados. Sim, ainda hoje eu não sei pegar muito bem num lápis para desenhar ou num pincél para pintar ou até mesmo numa caneta para escrever sem estar com os dentes devidamente escovados.

Alguns rituais não fazem sentido fora da própria cabeça e outros te prendem em situações peculiares que mais te tiram a liberdade do que te organizam o juízo. A última década foi de criar meus próprios rituais, esgotá-los e então flexibilizá-los e substituí-los por novos e mais leves/livres.

Toda magia consiste em manipular a natureza para alcançar um estado de consciência ideal. Isso serve para o processo de infusão de folhas secas em água quente em prol de um cházinho de boldo para aliviar dor de estômago, até o processo de manipular terra úmida e assá-la em prol de se obter uma bela escultura capaz de nos causar todo tipo de sentimentos. A folha de boldo, lá no canto dela, não cura dor de estômago. Assim como a argila no pé do mangue.

Quando entendemos o caminho entre a folha de boldo, lá no canto dela, e o conforto no estômago depois do chazinho, chamamos de ciência. Antes de entendermos esse caminho, chamamos de magia ou, em alguns casos, arte. Todo o misticismo acerca da arte e da magia envolve a lógica da menor compreensão: quanto mais compreendemos o efeito de um ritual apenas pelos seus efeitos e menos pela sua lógica, mais mágico ele se torna. É por isso que quando descobrimos os segredos por trás de um truque de mágica dizemos que aquilo ali perdeu a magia.

Pois somos bichos que gostamos de entender, mas gostamos mais ainda de sentir.

Hoje, tudo parece ter perdido a magia. A gente envelhece e as cores dos segredos se desbotam e tudo parece morno, sem mistério. Somos compelidos a entender tudo para se safar de sermos engolidos. Entender tudo é uma forma de sobreviver, mas tem gosto de legume mole, cozido demais. A crocância das coisas geralmente está em afastar a origem do final, deixar curtir o trajeto e alimentar o mistério através da intuição. Enquanto professor de artes, cansei de repetir para centenas de alunos que: certas coisas não são para entender, apenas para sentir.

Arte é o tipo de coisa que eu gosto de entender e sentir. E quando faço, prefiro fazer sentir do que entender.

No começo deste ano, fui a Recife, a passeio, conheci o Intituto Ricardo Brennand e a Oficina de Cerâmica de Francisco Brennand. Dois lugares mágicos onde a explicação das coisas permace escondida e a magia da dúvida paira. Senti mil coisas, principalmente inspiração. Inspirado, elaborei, assim como Brennand e muitos outros artistas, um sigilo magicko para dar sorte aos trabalhos, à arte e à vida neste ano de 2024. Mostrei para minha esposa e ela riu “que ódio, você é muito místico”… ela acha graça quando eu misturo as coisas.

Seguem umas fotos do nosso passeio a Oficina de Francisco Brennand:

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