[Diário Crítico] Assassinos da Lua das Flores – Crítica e Ilustração

Crítica

O diretor Martin Scorsese é reconhecido em qualquer relato como uma figura obcecada. Principalmente, obcecado por filmes. Um verdadeiro dicionário humano de referências cinematográficas, o cara é um verdadeiro filme-nerd. Entre suas marcas está a forma de trabalhar drama, suspense e comédia em proporções dosadas com domínio técnico refinado semelhante a poucos outros realizadores vivos. Para além disso, é o idealizador e organizador de uma das principais instituições de preservação de filmes do mundo, a The Film Foundation. Ao assistir Assassinos da Lua das Flores, não consigo deixar de pensar no histórico da recepção de seus filmes pela indústria estadunidense ao longo dos anos: de realizador indie semi-fracassado para uma lenda viva do Cinema, em entrevistas recentes menciona com pessimismo esta recepção positiva tardia, quando sua idade avançada já não lhe permite contar as histórias que ainda queria contar.

Se o seu lançamento anterior, O Irlandês, pela Netflix, condensa toda a percepção de que o Scorsese é um descendente de italianos que só sabe fazer filmes de máfia (não apenas sabe, como revisita e dialoga com o gênero metalinguisticamente), assistir Lua das Flores me faz perceber outra face sua: a de um senhorzinho apaixonado pelo potencial do Cinema em contar histórias (de um país, de pessoas, de um povo).

Leo, Lily, Martin e Bob trocando ideia sobre quem é o mais foda.

O filme é contextualizado no início do século XX, quando a descoberta do petróleo tornou a nação indígena Osage um povo riquíssimo. Tanta riqueza atraiu os empresários brancos, que manipularam, extorquiram e roubaram o dinheiro do povo Osage de formas diversas, culminando em um genocídio institucionalizado deste povo. A obra possui uma abordagem histórica, crua e naturalista que dispensa trejeitos clássicos do realizador como a romantização comedida da violência, o humor mórbido e os personagens descolados. Um reflexo de uma fase mais silenciosa adotada pelo diretor nos últimos anos. Aqui, o cineasta faz o seu melhor para contar a história do povo Osage do seu ponto de vista de velho branco novaiorquino cineasta milionário, respeitando a adaptação dos fatos reais através de ferramentas mais diretas, focadas e enfatizadas na construção dos personagens sem deixar de aplicar uma perspectiva sensível de artista perante a dureza da trama.

É importante lembrar que o Scorsese é um intelectual do Cinema e um ser humano completamente consciente da sua posição enquanto realizador e pesquisador: chegada a hora de fazer a sua versão de um western (o gênero que vendeu por muitos anos a ascensão épica dos Estados Unidos), ao invés de seguir com a exaltação pitoresca dos cowboys, opta por reafirmar seu estilo gangsterista, apresentando um contraste claro e seco da violência norte-americana e um retrato evidente da ganância humana. No lugar de contar uma história de suspense descolada e misteriosa sobre uma das primeiras atuações do FBI nos Estados Unidos, acompanhando os investigadores e transformando o filme num thriller de suspense e drama — o que era mais mais parecido com o caminho do roteiro original escrito por Eric Roth (roteirista muito competente responsável por Forrest Gump e O Informante) baseado no livro de David Grann, o diretor — mais comedido, segue um caminho que busca destacar o protagonismo dos Osage neste capítulo trágico da história humana, realizando um filme pautado em diálogos, personagens e suas relações complexas, muitas vezes bifurcadas.

O filme é comprido e abusa de preceitos clássicos de mapeamento de cinema: atores e câmeras posicionados em 3/4, panoramas explicativos, planos com ricas profundidades de campo, tudo evidenciando que o espectador está diante de um filme realizado pelos mais compententes e sensíveis realizadores do Cinema de dinheiro alto. Não é uma obra tecnicamente ousada, no sentido de trazer novidade, no lugar disso é impecavelmente bem amarrada pelo amplo conhecimento técnico e narrativo dos seus realizadores, o que afunila a atenção do espectador para o que realmente importa: a história. É simples, clássico e bem feito, apesar de caro.

Robert atua tão bem que mau o percebemos como um dos pontos altos do filme. Olha essa foto, que bacanuda.

Agora um parágrafo mais técnico/nerd sobre quatro momentos do filme que evidenciam bem esta relação entre qualidade técnica e sensibilidade artística: A montagem é muito eficaz. Duas ou três vezes, uma trucagem entre movimento de câmera e crossfade rápido dão a sensação de que um cenário se transforma em outro, enquanto os flashbacks são ágeis e muito bem ritmados; As cenas que se passam na prisão são “pobremente” iluminadas, deixando os detalhes do cenário na escuridão, lembrando a composição de uma peça de teatro barata. Nestes momentos, as câmeras são sempre posicionadas na altura do olhar dos personagens interlocutores, os diálogos sugerem imersão através da perspectiva de cada um deles, ressaltando o naturalismo; O genocídio do povo Osage é simbolizado pelo adoecimento lento e progressivo da personagem Mollie que é silenciosamente envenenada pelo próprio marido, uma metáfora para a relação entre os brancos e os Osage durante toda a trama; O desfecho em formato de rádio-novela e com a participação especial do próprio Scorsese sugerem a lembrança dos fatos reais pela desconstrução do sensacionalismo, o olhar se afasta da ficção e volta para a importância dos fatos históricos através de um breve momento que brinca com dramaturgia e metalinguagem. É uma proposta menos épica e mais realista que brinca, ironicamente e de forma inteligente, com o lúdico.

Merece destaque como a trama se beneficia ao destacar a relação peculiar entre os personagens do DiCaprio e da Lily Gladstone (esta última numa atuação minimalista, rica em nuances): um casamento que nunca se entende se foi arranjado ou não, personagens que nunca deixam claro o funcionamento do seu amor, tudo funciona muito bem como metáfora do contexto, a relação complicada que se estabelecia nas terras da nação Osage no início do século XX.

“Você consegue encontrar os coiotes nesta figura?”

Por fim, um comentário sobre a peculiaridade do protagonismo de um personagem desprezível: No início do filme, Ernest Buckhart é o tipo branco burro que aprende sobre o povo Osage num livro infantil ilustrado. Um trecho do livro que se destaca é uma figura de um campo gramado onde se escondem coiotes, predadores sorrateiros — “Você consegue encontrar os coiotes nesta figura?”. — Mais para o final do filme, o personagem entrega de bandeja toda sua fraqueza mental ao ser manipulado por quem quer que esteja aplicando mais poder sobre suas decisões no momento. Planos abertos em câmera subjetiva entregam cenários repletos de personagens suspeitos olhando diretamente para a câmera: familiares manipuladores ou agentes do FBI persuasivos. É um posicionamento da autoria do filme que tenta contar uma história que não é sua e também a culminância do dilema do protagonista simbolizada, uma provocação ao público que assiste ao filme do mesmo modo que o personagem leu num livro: qual a sua posição na cadeia alimentar?

Ilustração

Assassinos da Lua das Flores metaforiza toda a relação entre o povo branco e a nação Osage no início do séc. XX através do casamento confuso e cheio de intenções indefinidas ou obscuras de Mollie e Ernest. A ilustração enfatiza os protagonistas simbolicamente.

Os olhares sugerem a intenção de cada um: Mollie desconfia do marido enquanto Ernest desconfia de quem se aproxima, olhando para a “câmera” (o espectador da ilustração, sim, você), protetivo com a esposa. O gesto de sobrepôr as mãos sobre o corpo apequenado de Mollie, assim como as desproporções de tamanhos expressionistas entre as duas figuras, sugerem essa relação dupla e violenta da sobreposição de um povo sobre o outro, disfarçado de companheirismo.

Outra opção deliberada foi dar um tom avermelhado para a ilustração, digitalmente. Diferente das outras ilustrações da série Diário Crítico que são todas em tons de cinza sobre o fundo branco, evidenciando a simplicidade do lápis, para este ano optei pela utilização eventual de cores para enfatizar determinados elementos. Neste, a clara alusão à violência.


Esta postagem possui uma equivalência no Youtube, se você prefere este tipo de conteúdo em vídeo, sugiro assistir. Você também pode conferir uma edição resumida deste vídeo no instagram e no tiktok.

[Diário Crítico] Felizmente, um filme de velho

Crítica do filme O Irlandês (publicada originalmente em junho de 2020)

Crítica do filme

Diferente de outros conhecidos filmes sobre máfia dirigidos por Martin Scorsese (como Os Bons CompanheirosCassino e Os Infiltrados), O Irlandês (2019) é um filme mais sóbrio e amadurecido contado como um épico que traz no lugar do herói, um assassino. O filme é baseado no livro I Heard You Paint Houses do jornalista Charles Brandt que conta a história real do envolvimento do sindicalista Jimmy Hoffa com a máfia italiana a partir da perspectiva do matador Frank “The Irishman” Sheeran.

Apesar de um roteiro inspirado em material previamente publicado e baseado em fatos reais (escrito por Steve Zaillian, autor de outro filme de bandido que merece destaque, o maravilhoso O Gângster), toda a premissa de O Irlandês parece ter sido escrita para a direção do Scorsese. Me atrevo a dizer que é o seu filme mais distinto por abordar a biografia de um assassino com a sensibilidade e precisão de quem entende os conceitos de morte e tempo. E também por que tem três horas e meia de duração.

Apesar de comprido, é surpreendente como é bem ritmado. Isso se deve ao trabalho primoroso da montadora Thelma Schoonmaker, uma senhorinha de oitenta anos que entende a arte da edição cinematográfica como ninguém. Parceira de longa data do Scorsese, ela é responsável pela montagem de clássicos como Touro Indomável e O Rei da Comédia.

Um dos pontos altos da montagem do filme é também um dos pontos altos da direção e da narrativa: uma grande sequência de planos na qual o protagonista se vê de frente a uma missão inevitável e aterrorizante: assassinar um amigo, pondo à prova a confiança de seus mandantes, penosamente conquistada ao longo dos anos. A sequência em questão envolve, para o protagonista, várias etapas que normalmente seriam suprimidas em uma montagem tradicional (pegar um avião, descer do avião, entrar num carro, etc.), mas a esta altura, cada detalhe é vagarosamente apresentado no filme e o que seria visto como um “mostrar demais” aqui se torna uma adorável construção de tensão.

tensão é, inclusive, uma das características da identidade de Scorsese como cineasta. Assim como o humor dosado e a narração em primeira pessoa que são ferramentas protagonistas neste filme. Com estas ferramentas o diretor reforça um dos elementos mais marcantes de sua filmografia: histórias nas quais a jornada é o que mais importa.

O Irlandês é um filme que pode não tocar o coração de todos os públicos, afinal, conta uma história sobre velhos mafiosos, é dirigido por um velho, montado por uma velha e estrelado por três velhinhos (Robert DeNiroAl Pacino e Joe Pesci). Felizmente, é nesse monte de velhice que está acumulada a experiência capaz de trazer a tona um filme que passa a constante sensação de que todos os artistas envolvidos sabem muito bem o que estão fazendo.

Concluo levantando o olhar para mais um elemento de alta qualidade deste filme: a trilha sonora de Robbie Robertson (outro velhinho veterano) que embala o filme inteiro num tom descolado de filme de gângster, sem deixar de dar relevo a um clima melancólico e sentimental, coisa rara em filmes do gênero.

Ilustração

Uma das mensagens mais fortes que absorvi em O Irlandês tem a ver com a maneira que a morte é um relevo para a construção do protagonista. Tanto é o seu ganha-pão, quanto é a moção catalisadora de seus mais profundos dilemas. A cena em que ele visita uma funerária para escolher seu próprio caixão e a ideia da velhice como uma espera paciente pelo fim, me fizeram optar por esta composição em dois planos.

Atrás da figura de Frank Sheeran, à esquerda, o caixão aberto e vazio indicando a iminência da morte (sua, de suas vítimas, de seus amigos). E a direita, o caixão fechado, a conclusão de uma história de violência.


Esta postagem é uma republicação. O texto foi originalmente publicado no blog Diário Crítico hospedado na plataforma Medium em 4 de junho de 2020.

[Diário Crítico] Divinos, mas humanos e reais

Crítica do filme Dois Papas (publicada originalmente em junho de 2020)

Crítica do filme

O filme Dois Papas (2019) conta a história do último processo de sucessão do papado da Igreja Católica que pegou o mundo de surpresa na época em que o Papa Bento XVI (nascido Joseph Aloisius Ratzinger) renunciou de sua posição máxima na hierarquia da Igreja Católica (fato que não ocorria desde o ano 1415), dando lugar ao cardeal Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco. Para os que viveram o momento histórico sempre esteve claro que esta transição de liderança se refletiu na popularidade da figura do Papa. O antes conservador e ranzinza Bento XVI dera lugar ao carismático e ousado Papa Chico, primeiro Papa latino-americano. Mas esta é uma visão reducionista que o roteiro assinado por Anthony McCarten dilui muito bem. O roteirista é nome de peso das adaptações biográficas, sendo autor dos roteiros de filmes como A Teoria de Tudo, O Destino de uma Nação e Bohemian Rapsody.

Apesar desta aparente polarização de carisma entre as duas figuras, o filme nos mostra dois religiosos que se respeitam mesmo com suas diferenças. As atuações dos protagonistas nas cenas em que atuam juntos tenta nos apresentar perspectivas mais humanas sobre dois homens que assumiram a posição mais divina da principal instituição cristã do planeta. São homens com passado, anseios, memórias e vivências repletas de dor, dúvidas e devoção.

Anthony Hopkins e Jonathan Pryce interpretam os papas Bento XVI e Francisco

Se por um lado, Ratzinger é visto como um típico alemão frio e insensível, por outro a performance de Anthony Hopkins o desvela como um idoso que tem dificuldades para entender o mundo atual, sua responsabilidade como pontífice e até mesmo as raízes de sua própria fé. Enquanto isso, através da boa performance de Jonathan Pryce, somos apresentados a um cardeal Bergoglio carismático e desenrolado, mas que enxerga seu passado sombrio como uma pedra que o impede de assumir a grande responsabilidade que se revela no horizonte. Diálogos ora bem-humorados, ora filosóficos, mas sempre dinâmicos, nos fazem perceber a dissolução do divino e uma homenagem a humanidade de cada personagem.

A direção é do brasileiro Fernando Meirelles e a Fotografia é do também brasileiro César Charlone, ambos reconhecidos por suas principais parcerias em Cidade de DeusEnsaio Sobre a Cegueira e O Jardineiro Fiel. Com um toque de estilo e assinatura característica de suas filmografias, os dois são responsáveis por pontos altos do filme: a câmera inquieta e a fotografia crua que mesclam a sensação de ficção com documentário; e algumas sequências de flashbacks em preto-e-branco que dão ao filme momentos de elegância precisa de cinema clássico.

Ilustração

A cena escolhida me pareceu apropriada. Toda a indicação de leitura da esquerda para a direita sugere a ideia de sucessão, assim como o ato de cochichar no ouvido, como que o Papa de branco passasse um segredo para seu substituto. Segredo é uma palavra-chave quando se fala da instituição católica. E há também a sugestão de riqueza proposta pelo sofá adornado à esquerda do Papa de branco em contraponto com o vazio à direita do cardeal, indicando humildade.

Sendo esta a primeira imagem da série a que se pretende o projeto Diário Crítico, ela é também um experimento de estilo. A ideia é que todas as próximas ilustrações sigam esta estrutura monocromática e simples.


Esta postagem é uma republicação. O texto foi originalmente publicado no blog Diário Crítico hospedado na plataforma Medium em 2 de junho de 2020.