[Diário Crítico] Felizmente, um filme de velho

Crítica do filme O Irlandês (publicada originalmente em junho de 2020)

Crítica do filme

Diferente de outros conhecidos filmes sobre máfia dirigidos por Martin Scorsese (como Os Bons CompanheirosCassino e Os Infiltrados), O Irlandês (2019) é um filme mais sóbrio e amadurecido contado como um épico que traz no lugar do herói, um assassino. O filme é baseado no livro I Heard You Paint Houses do jornalista Charles Brandt que conta a história real do envolvimento do sindicalista Jimmy Hoffa com a máfia italiana a partir da perspectiva do matador Frank “The Irishman” Sheeran.

Apesar de um roteiro inspirado em material previamente publicado e baseado em fatos reais (escrito por Steve Zaillian, autor de outro filme de bandido que merece destaque, o maravilhoso O Gângster), toda a premissa de O Irlandês parece ter sido escrita para a direção do Scorsese. Me atrevo a dizer que é o seu filme mais distinto por abordar a biografia de um assassino com a sensibilidade e precisão de quem entende os conceitos de morte e tempo. E também por que tem três horas e meia de duração.

Apesar de comprido, é surpreendente como é bem ritmado. Isso se deve ao trabalho primoroso da montadora Thelma Schoonmaker, uma senhorinha de oitenta anos que entende a arte da edição cinematográfica como ninguém. Parceira de longa data do Scorsese, ela é responsável pela montagem de clássicos como Touro Indomável e O Rei da Comédia.

Um dos pontos altos da montagem do filme é também um dos pontos altos da direção e da narrativa: uma grande sequência de planos na qual o protagonista se vê de frente a uma missão inevitável e aterrorizante: assassinar um amigo, pondo à prova a confiança de seus mandantes, penosamente conquistada ao longo dos anos. A sequência em questão envolve, para o protagonista, várias etapas que normalmente seriam suprimidas em uma montagem tradicional (pegar um avião, descer do avião, entrar num carro, etc.), mas a esta altura, cada detalhe é vagarosamente apresentado no filme e o que seria visto como um “mostrar demais” aqui se torna uma adorável construção de tensão.

tensão é, inclusive, uma das características da identidade de Scorsese como cineasta. Assim como o humor dosado e a narração em primeira pessoa que são ferramentas protagonistas neste filme. Com estas ferramentas o diretor reforça um dos elementos mais marcantes de sua filmografia: histórias nas quais a jornada é o que mais importa.

O Irlandês é um filme que pode não tocar o coração de todos os públicos, afinal, conta uma história sobre velhos mafiosos, é dirigido por um velho, montado por uma velha e estrelado por três velhinhos (Robert DeNiroAl Pacino e Joe Pesci). Felizmente, é nesse monte de velhice que está acumulada a experiência capaz de trazer a tona um filme que passa a constante sensação de que todos os artistas envolvidos sabem muito bem o que estão fazendo.

Concluo levantando o olhar para mais um elemento de alta qualidade deste filme: a trilha sonora de Robbie Robertson (outro velhinho veterano) que embala o filme inteiro num tom descolado de filme de gângster, sem deixar de dar relevo a um clima melancólico e sentimental, coisa rara em filmes do gênero.

Ilustração

Uma das mensagens mais fortes que absorvi em O Irlandês tem a ver com a maneira que a morte é um relevo para a construção do protagonista. Tanto é o seu ganha-pão, quanto é a moção catalisadora de seus mais profundos dilemas. A cena em que ele visita uma funerária para escolher seu próprio caixão e a ideia da velhice como uma espera paciente pelo fim, me fizeram optar por esta composição em dois planos.

Atrás da figura de Frank Sheeran, à esquerda, o caixão aberto e vazio indicando a iminência da morte (sua, de suas vítimas, de seus amigos). E a direita, o caixão fechado, a conclusão de uma história de violência.


Esta postagem é uma republicação. O texto foi originalmente publicado no blog Diário Crítico hospedado na plataforma Medium em 4 de junho de 2020.