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Sobre livros e solidão

Uma nova parceria com a editora Draco e a exposição “Auta para Todos”.

O celular na mão o tempo inteiro muitas vezes nos dá a sensação de que estamos conectados a uma grande e universal rede afetuosa, um fio intrincado de relacionamentos, seguidores, amizades e bons contatos. Parar a vida para ler um livro, no entanto, é o exato oposto desta sensação de conexão urgente e imediata: você se recolhe num recanto solitário para encarar um pedaço de papel encadernado com uma história que, durante aquela leitura comprida, é uma experiência apenas sua. Consigo entender a lógica que reside no medo crescente que a minha geração estabeleceu com os livros e a leitura, não é fácil encarar a própria companhia por muito tempo.

Hoje é possível passar horas escondido dentro de casa, sem necessariamente se sentir sozinho, graças aos tuítes, comentários, curtidas e todas estas dinâmicas interativas cronicamente online. Fazer arte e publicá-la na internet é muito satisfatório devido a todo o oba-oba promovido pelos algoritmos e engajamentos. Por outro lado, fazer livros, assim como lê-los, é uma atividade ainda mais dependente do isolamento: escrever, ilustrar, compôr palavras e diagramação, todas são atividades muito introspectivas e concentradas na solidão do ateliê.

No último mês estou envolvido bem ativamente em dois trabalhos paralelos, ambos que envolvem uma relação com livros e com a feitura deles:

1) Passo os dias agarrado no lápis e no papel, sozinho dentro do ateliê, ilustrando um quadrinho em parceria com a editora Draco. É uma história muito interessante e um desafio consideravelmente maior que as últimas parcerias que estabeleci com a editora (esta já é minha quarta parceria com eles). As páginas estão ficando prontas a passos de tartaruga mas isso se deve muito ao empenho que estou colocando neste trabalho e à compreensão da equipe do projeto que compreende muito bem como funciona este processo de se ilustrar um quadrinho inteiro, com cuidado e esmero. Por enquanto não devo falar nada sobre este projeto, mas garanto que vocês vão saber sobre ele em breve e está ficando lindo!

2) Em paralelo, a convite do amigo Alexandre Gurgel, estou atuando como mediador artístico e educativo da exposição “Auta para Todos” que acontece no Salão Nobre da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. Esta é a maior exposição sobre a vida e a obra da grande poetisa macaibense Auta de Souza, uma das maiores escritoras simbolistas do Brasil. De segunda a sexta-feira, das 8h às 14h, até o dia 19 de abril, passo os dias também sozinho, dentro do espaço expositivo, aguardando ansiosamente pela companhia do público que vem assistir à exposição.

Uma ilustração direto das artes originais do novo quadrinho em parceria com a Editora Draco.
Exposição “Auta para Todos” em cartaz na ALRN até o dia 19 de abril

Estes dois trabalhos envolvem livros, uma das minhas maiores paixões e um tema que, ao lado do Cinema, permeia maior parte da minha carreira como artista. Sigo o raciocínio: trabalhar com livros parece ser um processo solitário e isolante. A própria Auta de Souza teve uma vida solitária, cercada de livros, melancolia e perdas, uma profundidade muito refletida nos seus escritos. Fico pensando como seria sua vida se tivesse nascido no início do século XXI e não no final do XIX. Será que teria uma conta no instagram? Ou postaria suas poesias no facebook? Seria menos triste?

Em contraponto, reflito também sobre as condições que me fizeram parar aqui, no contexto de profissionalmente responsável por estes dois projetos:

1) Minha parceria com a Draco começou com minha participação no Festival Internacional de Quadrinhos, em 2022. Passar uma semana rodeado de quadrinistas, ilustradores, colecionadores e escritores de todo o Brasil é, na verdade, a experiência menos solitária do mundo. Tanto pelo fato de que ninguém sabe sair do evento e ir dormir em seus quartos de hotel sem antes tentar virar a madrugada tomando cerveja nas beiradas de calçadas do centro de Belo Horizonte, quanto pelo fato de que um evento como este é uma semana inteira de conversê sobre como é ralado trabalhar com livros e quadrinhos no Brasil. E assim, na adversidade, há um senso de que estamos todos no mesmo barco, tapando os buracos que o afundam.

2) Sobre a exposição de Auta, minha parceria com o Alexandre Gurgel começou ano passado, quando o Sesc me deixou responsável pela mediação da belíssima exposição do seu acervo de gravuras na Galeria do Sesc/RN. Depois do sucesso de público da exposição do Sesc, o Alexandre me convidou e incubiu a atuar com a mediação artística e educativa da exposição “Auta para Todos”. Apesar da aparente solidão da função de mediar o público e o acervo de uma exposição de arte, literatura e história, a exposição está tendo uma ótima visitação e o tempo que passei sozinho esta semana não se sobrepôs à frequência do público. As reações à exposição são diversas, mas todas envolvem um senso de comunhão e regionalismo, a identificação pessoal e artística com Auta, um dos nomes maiores da cultura norteriograndese.

Nos últimos anos, entendemos e percebemos que quanto mais cronicamente online ficamos, menos relações duradouras se estabelecem. Li recentemente (no xtuiter kkk) uma discussão muito interessante sobre como um artista não precisa de milhares de seguidores para ter um bom alcance do seu trabalho. Os anos passam e noto que esta percepção está mais do que correta. Nenhuma das minhas relações de trabalho e os colegas que conheci no caminho se deveram a qualquer sucesso nas redes sociais. Por outro lado, foram todos relacionamentos motivados pela paixão dilacerante, mórbida e incurável por livros.

Quanto mais leio, produzo e trabalho com livros e quadrinhos, mais gente incrível conheço. Quanto mais estudo e aprendo sobre a vida dos que viveram rodeados de livros e já se foram, mais entendo que a literatura, na verdade, reúne pessoas. Livros não têm nada a ver com solidão.

[Diário Crítico] Assassinos da Lua das Flores – Crítica e Ilustração

Crítica

O diretor Martin Scorsese é reconhecido em qualquer relato como uma figura obcecada. Principalmente, obcecado por filmes. Um verdadeiro dicionário humano de referências cinematográficas, o cara é um verdadeiro filme-nerd. Entre suas marcas está a forma de trabalhar drama, suspense e comédia em proporções dosadas com domínio técnico refinado semelhante a poucos outros realizadores vivos. Para além disso, é o idealizador e organizador de uma das principais instituições de preservação de filmes do mundo, a The Film Foundation. Ao assistir Assassinos da Lua das Flores, não consigo deixar de pensar no histórico da recepção de seus filmes pela indústria estadunidense ao longo dos anos: de realizador indie semi-fracassado para uma lenda viva do Cinema, em entrevistas recentes menciona com pessimismo esta recepção positiva tardia, quando sua idade avançada já não lhe permite contar as histórias que ainda queria contar.

Se o seu lançamento anterior, O Irlandês, pela Netflix, condensa toda a percepção de que o Scorsese é um descendente de italianos que só sabe fazer filmes de máfia (não apenas sabe, como revisita e dialoga com o gênero metalinguisticamente), assistir Lua das Flores me faz perceber outra face sua: a de um senhorzinho apaixonado pelo potencial do Cinema em contar histórias (de um país, de pessoas, de um povo).

Leo, Lily, Martin e Bob trocando ideia sobre quem é o mais foda.

O filme é contextualizado no início do século XX, quando a descoberta do petróleo tornou a nação indígena Osage um povo riquíssimo. Tanta riqueza atraiu os empresários brancos, que manipularam, extorquiram e roubaram o dinheiro do povo Osage de formas diversas, culminando em um genocídio institucionalizado deste povo. A obra possui uma abordagem histórica, crua e naturalista que dispensa trejeitos clássicos do realizador como a romantização comedida da violência, o humor mórbido e os personagens descolados. Um reflexo de uma fase mais silenciosa adotada pelo diretor nos últimos anos. Aqui, o cineasta faz o seu melhor para contar a história do povo Osage do seu ponto de vista de velho branco novaiorquino cineasta milionário, respeitando a adaptação dos fatos reais através de ferramentas mais diretas, focadas e enfatizadas na construção dos personagens sem deixar de aplicar uma perspectiva sensível de artista perante a dureza da trama.

É importante lembrar que o Scorsese é um intelectual do Cinema e um ser humano completamente consciente da sua posição enquanto realizador e pesquisador: chegada a hora de fazer a sua versão de um western (o gênero que vendeu por muitos anos a ascensão épica dos Estados Unidos), ao invés de seguir com a exaltação pitoresca dos cowboys, opta por reafirmar seu estilo gangsterista, apresentando um contraste claro e seco da violência norte-americana e um retrato evidente da ganância humana. No lugar de contar uma história de suspense descolada e misteriosa sobre uma das primeiras atuações do FBI nos Estados Unidos, acompanhando os investigadores e transformando o filme num thriller de suspense e drama — o que era mais mais parecido com o caminho do roteiro original escrito por Eric Roth (roteirista muito competente responsável por Forrest Gump e O Informante) baseado no livro de David Grann, o diretor — mais comedido, segue um caminho que busca destacar o protagonismo dos Osage neste capítulo trágico da história humana, realizando um filme pautado em diálogos, personagens e suas relações complexas, muitas vezes bifurcadas.

O filme é comprido e abusa de preceitos clássicos de mapeamento de cinema: atores e câmeras posicionados em 3/4, panoramas explicativos, planos com ricas profundidades de campo, tudo evidenciando que o espectador está diante de um filme realizado pelos mais compententes e sensíveis realizadores do Cinema de dinheiro alto. Não é uma obra tecnicamente ousada, no sentido de trazer novidade, no lugar disso é impecavelmente bem amarrada pelo amplo conhecimento técnico e narrativo dos seus realizadores, o que afunila a atenção do espectador para o que realmente importa: a história. É simples, clássico e bem feito, apesar de caro.

Robert atua tão bem que mau o percebemos como um dos pontos altos do filme. Olha essa foto, que bacanuda.

Agora um parágrafo mais técnico/nerd sobre quatro momentos do filme que evidenciam bem esta relação entre qualidade técnica e sensibilidade artística: A montagem é muito eficaz. Duas ou três vezes, uma trucagem entre movimento de câmera e crossfade rápido dão a sensação de que um cenário se transforma em outro, enquanto os flashbacks são ágeis e muito bem ritmados; As cenas que se passam na prisão são “pobremente” iluminadas, deixando os detalhes do cenário na escuridão, lembrando a composição de uma peça de teatro barata. Nestes momentos, as câmeras são sempre posicionadas na altura do olhar dos personagens interlocutores, os diálogos sugerem imersão através da perspectiva de cada um deles, ressaltando o naturalismo; O genocídio do povo Osage é simbolizado pelo adoecimento lento e progressivo da personagem Mollie que é silenciosamente envenenada pelo próprio marido, uma metáfora para a relação entre os brancos e os Osage durante toda a trama; O desfecho em formato de rádio-novela e com a participação especial do próprio Scorsese sugerem a lembrança dos fatos reais pela desconstrução do sensacionalismo, o olhar se afasta da ficção e volta para a importância dos fatos históricos através de um breve momento que brinca com dramaturgia e metalinguagem. É uma proposta menos épica e mais realista que brinca, ironicamente e de forma inteligente, com o lúdico.

Merece destaque como a trama se beneficia ao destacar a relação peculiar entre os personagens do DiCaprio e da Lily Gladstone (esta última numa atuação minimalista, rica em nuances): um casamento que nunca se entende se foi arranjado ou não, personagens que nunca deixam claro o funcionamento do seu amor, tudo funciona muito bem como metáfora do contexto, a relação complicada que se estabelecia nas terras da nação Osage no início do século XX.

“Você consegue encontrar os coiotes nesta figura?”

Por fim, um comentário sobre a peculiaridade do protagonismo de um personagem desprezível: No início do filme, Ernest Buckhart é o tipo branco burro que aprende sobre o povo Osage num livro infantil ilustrado. Um trecho do livro que se destaca é uma figura de um campo gramado onde se escondem coiotes, predadores sorrateiros — “Você consegue encontrar os coiotes nesta figura?”. — Mais para o final do filme, o personagem entrega de bandeja toda sua fraqueza mental ao ser manipulado por quem quer que esteja aplicando mais poder sobre suas decisões no momento. Planos abertos em câmera subjetiva entregam cenários repletos de personagens suspeitos olhando diretamente para a câmera: familiares manipuladores ou agentes do FBI persuasivos. É um posicionamento da autoria do filme que tenta contar uma história que não é sua e também a culminância do dilema do protagonista simbolizada, uma provocação ao público que assiste ao filme do mesmo modo que o personagem leu num livro: qual a sua posição na cadeia alimentar?

Ilustração

Assassinos da Lua das Flores metaforiza toda a relação entre o povo branco e a nação Osage no início do séc. XX através do casamento confuso e cheio de intenções indefinidas ou obscuras de Mollie e Ernest. A ilustração enfatiza os protagonistas simbolicamente.

Os olhares sugerem a intenção de cada um: Mollie desconfia do marido enquanto Ernest desconfia de quem se aproxima, olhando para a “câmera” (o espectador da ilustração, sim, você), protetivo com a esposa. O gesto de sobrepôr as mãos sobre o corpo apequenado de Mollie, assim como as desproporções de tamanhos expressionistas entre as duas figuras, sugerem essa relação dupla e violenta da sobreposição de um povo sobre o outro, disfarçado de companheirismo.

Outra opção deliberada foi dar um tom avermelhado para a ilustração, digitalmente. Diferente das outras ilustrações da série Diário Crítico que são todas em tons de cinza sobre o fundo branco, evidenciando a simplicidade do lápis, para este ano optei pela utilização eventual de cores para enfatizar determinados elementos. Neste, a clara alusão à violência.


Esta postagem possui uma equivalência no Youtube, se você prefere este tipo de conteúdo em vídeo, sugiro assistir. Você também pode conferir uma edição resumida deste vídeo no instagram e no tiktok.

Filme estranho com gente esquisita

Um relato sobre a primeira turma do Curso de Cinema para Jovens Realizadores do Croqui Estúdio

Em setembro do ano passado, motivados pelo desejo de compartilhar e trocar conhecimento sobre arte contemporânea e cinema, eu e a Bia inauguramos o Croqui Estúdio. O início foi meio que na correria pois queríamos aproveitar o semestre para propôr algumas atividades educativas antes das festividades de final de ano.

Dentre os cursos e oficinas que inauguramos, destaco a primeira turma do curso de Cinema para Jovens Realizadores. A proposta era formar um grupo de meia dúzia de pessoas em idade de início de carreira para apresentar um panorama geral sobre o que é feito em Cinema no Rio Grande do Norte e quais as possibilidades para se realizar filmes independentes de baixo custo. A turma veio variada, apareceu gente de teatro, gente de jornalismo, uma galera boa.

Sempre que realizo cinema independente gosto de vender o conceito de que o Cinema que é feito na esquina do Nordeste (Natal, João Pessoa, Fortaleza, entre outras cidades deste cantinho de cá) tem se mostrado cada vez mais propenso a se expressar através de filmes estranhos: surrealismo, horror e doideira parecem reinar no imaginário da juventude realizadora de cinema local.

Isso se dá por diversos motivos, mas é muito importante entender essa propensão ao cinema de gênero como um tipo de cinema ideal de se fazer nas bandas de cá, no contexto local, assim como faziam os italianos e os estadunidenses na década de 60/70, tentando produzir material muito autoral sobre suas próprias realidades com quase nenhum dinheiro no bolso.

Partindo das atividades propostas no curso, o grupo composto por sete jovens elaborou um roteiro coletivo, um curta-metragem intitulado “A Caixa” (este pode ou não ser o título provisório do projeto). É a história de um casal, Agatha e Allana, que tem uma noite tranquila de jogos de tabuleiro interrompida pela entrega misteriosa de uma caixa na porta de casa. A caixa vem com uma informação (“Para A.“) e uma regra (“Não abra!”) e isso é suficiente para desencadear o mais puro caos entre as duas amantes. O filme se desenrola para um final completamente inesperado e é cheio de umas ousadias que dariam muito orgulho ao Sam Raimi novinho.

Apesar de intenso, o set de filmagem foi menos caótico do que eu estava esperando para um grupo de jovens com pouca vivência acumulada neste tipo de ambiente. Isso se deve à experiência prévia de alguns, a empolgação e plena dedicação de todos. Foram duas madrugadas violentas, uma experiência incrível e (espero que) inesquecível da qual eu mesmo tenho muito poucas fotos (pois, como disse, foi intenso e não deu tempo de muita coisa além de botar a mão na massa). Mas vou deixar algum material a seguir, para ilustrar, e sigo com os agradecimentos.

Agradeço imensamente aos membros da turma: Alex, Alexandre, Eduardo, Jesulei, Johnny, Iza e Kyara pelo belíssimo trabalho. Vocês fizeram um ótimo trabalho e eu espero que tenham se divertido, isso é o mais importante. Agradeço também o apoio dos que chegaram junto no projeto de diversas formas: principalmente à Beatriz que está comigo no Croqui Estúdio e em todos os outros projetos da vida; a Eduarda que fez a maquiagem e aguentou acompanhar o perrengue até o fim; ao Raul que no primeiro dia de filmagem salvou muito com equipamentos e cartões de memória; ao Vitor por ceder a belíssima casa que serviu de locação, além da paciência em aguentar um monte de gente se esguelando e fazendo bagunça até o amanhecer; a Ana Lívia que chegou no último dia só pra ver como era e acabou assinando um contrato e fazendo uma ponta no filme.

Aproveito o espaço para divulgar que já estão abertas as inscrições para uma segunda turma do Curso de Cinema para Jovens Realizadores do Croqui Estúdio. Se você se interessa em fazer filmes e tem menos de 30 anos de idade, clica NESTE LINK para mais informações e inscrições. As aulas acontecem a partir de abril e são apenas 6 vagas.

Fazer Arte com os dentes escovados

Sobre arte, magia e rituais

Dez anos atrás, motivado por um trabalho de uma disciplina do curso de Artes Visuais, comecei a estudar tarô. Na época, meu interesse era por semiótica e eu entendia o tarô como uma ferramenta simbolicamente riquíssima. Portanto, o trabalho a que me propus, inserido em um contexto acadêmico e com a cabeça recheada de conceitos de crítica genética, era desenvolver um baralho de tarô com meu estilo artístico, com peculiar atenção aos símbolos, e escrever um artigo sobre o processo.

O baralho nunca ficou pronto, o artigo também não. Meu interesse por semiótica e crítica genética passeou por caminhos mais brandos e intelectualmente formais… mas estudar tarô… me abriu a cabeça para caminhos menos objetivos de pensamento artístico.

Normal. Até Jung, famoso psicanalista, discutia com seu famoso predecessor sobre o papel da intuição no procedimento científico. E eu estava, de fato, muito inserido na ciência da pesquisa em Arte. Foi a partir desta não completude de um trabalho e da percepção de que eu tinha em mãos um material que não poderia ser absorvido de forma inteiramente pragmática, que fui ampliando meus conhecimentos sobre a relação entre arte e magia e, eventualmente, elaborei meus próprios rituais.

Rituais, todos temos. De vida, o meu é acordar, tomar um banho demorado enquanto medito com a cabeça debaixo d’água. Segue-se de preparar um café coado e comer alguma coisa para livrar do mau-humor. Sem este passo-a-passo, o resto do dia se escorre completamente desorientado. Para fazer arte, até pouco tempo atrás, meu único ritual era estar de dentes escovados. Sim, ainda hoje eu não sei pegar muito bem num lápis para desenhar ou num pincél para pintar ou até mesmo numa caneta para escrever sem estar com os dentes devidamente escovados.

Alguns rituais não fazem sentido fora da própria cabeça e outros te prendem em situações peculiares que mais te tiram a liberdade do que te organizam o juízo. A última década foi de criar meus próprios rituais, esgotá-los e então flexibilizá-los e substituí-los por novos e mais leves/livres.

Toda magia consiste em manipular a natureza para alcançar um estado de consciência ideal. Isso serve para o processo de infusão de folhas secas em água quente em prol de um cházinho de boldo para aliviar dor de estômago, até o processo de manipular terra úmida e assá-la em prol de se obter uma bela escultura capaz de nos causar todo tipo de sentimentos. A folha de boldo, lá no canto dela, não cura dor de estômago. Assim como a argila no pé do mangue.

Quando entendemos o caminho entre a folha de boldo, lá no canto dela, e o conforto no estômago depois do chazinho, chamamos de ciência. Antes de entendermos esse caminho, chamamos de magia ou, em alguns casos, arte. Todo o misticismo acerca da arte e da magia envolve a lógica da menor compreensão: quanto mais compreendemos o efeito de um ritual apenas pelos seus efeitos e menos pela sua lógica, mais mágico ele se torna. É por isso que quando descobrimos os segredos por trás de um truque de mágica dizemos que aquilo ali perdeu a magia.

Pois somos bichos que gostamos de entender, mas gostamos mais ainda de sentir.

Hoje, tudo parece ter perdido a magia. A gente envelhece e as cores dos segredos se desbotam e tudo parece morno, sem mistério. Somos compelidos a entender tudo para se safar de sermos engolidos. Entender tudo é uma forma de sobreviver, mas tem gosto de legume mole, cozido demais. A crocância das coisas geralmente está em afastar a origem do final, deixar curtir o trajeto e alimentar o mistério através da intuição. Enquanto professor de artes, cansei de repetir para centenas de alunos que: certas coisas não são para entender, apenas para sentir.

Arte é o tipo de coisa que eu gosto de entender e sentir. E quando faço, prefiro fazer sentir do que entender.

No começo deste ano, fui a Recife, a passeio, conheci o Intituto Ricardo Brennand e a Oficina de Cerâmica de Francisco Brennand. Dois lugares mágicos onde a explicação das coisas permace escondida e a magia da dúvida paira. Senti mil coisas, principalmente inspiração. Inspirado, elaborei, assim como Brennand e muitos outros artistas, um sigilo magicko para dar sorte aos trabalhos, à arte e à vida neste ano de 2024. Mostrei para minha esposa e ela riu “que ódio, você é muito místico”… ela acha graça quando eu misturo as coisas.

Seguem umas fotos do nosso passeio a Oficina de Francisco Brennand:

Algumas boas fotos das filmagens de Sombras da Alma 2

Esta semana fez um ano que viramos madrugadas na Pizzaria Panorama, filmando ótimos planos para o curta-metragem “Sombras da Alma 2: Persona”. Como comentei em outras ocasiões aqui no blog, as filmagens deste trabalho aconteceram meio que por acaso, como uma consequência da minha passagem por Belo Horizonte para o Festival Internacional de Quadrinhos. Meu amigo Gabriel Santaballa convidou para filmarmos algo, assim, no susto e eu apresentei esse roteiro brilhante escrito pelo meu irmão Daniel Balduino. Foi tudo muito corrido, mas o resultado impressionou dadas as condições.

Sim, o filme já está pronto, mas ainda é inédito. O plano é estrear em novembro. Aguardem e, enquanto isso, fiquem com estas imagens inéditas que eu cliquei nos bastidores daquelas boas e agoniadas madrugadas de filmagem.

[Diário Crítico] Felizmente, um filme de velho

Crítica do filme O Irlandês (publicada originalmente em junho de 2020)

Crítica do filme

Diferente de outros conhecidos filmes sobre máfia dirigidos por Martin Scorsese (como Os Bons CompanheirosCassino e Os Infiltrados), O Irlandês (2019) é um filme mais sóbrio e amadurecido contado como um épico que traz no lugar do herói, um assassino. O filme é baseado no livro I Heard You Paint Houses do jornalista Charles Brandt que conta a história real do envolvimento do sindicalista Jimmy Hoffa com a máfia italiana a partir da perspectiva do matador Frank “The Irishman” Sheeran.

Apesar de um roteiro inspirado em material previamente publicado e baseado em fatos reais (escrito por Steve Zaillian, autor de outro filme de bandido que merece destaque, o maravilhoso O Gângster), toda a premissa de O Irlandês parece ter sido escrita para a direção do Scorsese. Me atrevo a dizer que é o seu filme mais distinto por abordar a biografia de um assassino com a sensibilidade e precisão de quem entende os conceitos de morte e tempo. E também por que tem três horas e meia de duração.

Apesar de comprido, é surpreendente como é bem ritmado. Isso se deve ao trabalho primoroso da montadora Thelma Schoonmaker, uma senhorinha de oitenta anos que entende a arte da edição cinematográfica como ninguém. Parceira de longa data do Scorsese, ela é responsável pela montagem de clássicos como Touro Indomável e O Rei da Comédia.

Um dos pontos altos da montagem do filme é também um dos pontos altos da direção e da narrativa: uma grande sequência de planos na qual o protagonista se vê de frente a uma missão inevitável e aterrorizante: assassinar um amigo, pondo à prova a confiança de seus mandantes, penosamente conquistada ao longo dos anos. A sequência em questão envolve, para o protagonista, várias etapas que normalmente seriam suprimidas em uma montagem tradicional (pegar um avião, descer do avião, entrar num carro, etc.), mas a esta altura, cada detalhe é vagarosamente apresentado no filme e o que seria visto como um “mostrar demais” aqui se torna uma adorável construção de tensão.

tensão é, inclusive, uma das características da identidade de Scorsese como cineasta. Assim como o humor dosado e a narração em primeira pessoa que são ferramentas protagonistas neste filme. Com estas ferramentas o diretor reforça um dos elementos mais marcantes de sua filmografia: histórias nas quais a jornada é o que mais importa.

O Irlandês é um filme que pode não tocar o coração de todos os públicos, afinal, conta uma história sobre velhos mafiosos, é dirigido por um velho, montado por uma velha e estrelado por três velhinhos (Robert DeNiroAl Pacino e Joe Pesci). Felizmente, é nesse monte de velhice que está acumulada a experiência capaz de trazer a tona um filme que passa a constante sensação de que todos os artistas envolvidos sabem muito bem o que estão fazendo.

Concluo levantando o olhar para mais um elemento de alta qualidade deste filme: a trilha sonora de Robbie Robertson (outro velhinho veterano) que embala o filme inteiro num tom descolado de filme de gângster, sem deixar de dar relevo a um clima melancólico e sentimental, coisa rara em filmes do gênero.

Ilustração

Uma das mensagens mais fortes que absorvi em O Irlandês tem a ver com a maneira que a morte é um relevo para a construção do protagonista. Tanto é o seu ganha-pão, quanto é a moção catalisadora de seus mais profundos dilemas. A cena em que ele visita uma funerária para escolher seu próprio caixão e a ideia da velhice como uma espera paciente pelo fim, me fizeram optar por esta composição em dois planos.

Atrás da figura de Frank Sheeran, à esquerda, o caixão aberto e vazio indicando a iminência da morte (sua, de suas vítimas, de seus amigos). E a direita, o caixão fechado, a conclusão de uma história de violência.


Esta postagem é uma republicação. O texto foi originalmente publicado no blog Diário Crítico hospedado na plataforma Medium em 4 de junho de 2020.

Sombras da Alma 2 na Mostra de Horror Queer do Cineclube Natal

4 de maio de 2023, às 19h.

Quando: 4 de maio de 2023, às 19h.

Onde: Goodala Burger

Fui convidado pelo pessoal do Cineclube Natal para participar da Mostra de Horror Queer que vem acontecendo toda quinta-feira na hamburgueria Goodala, em Natal/RN. A Mostra conta com exibições fixas de filmes alternativos, clássicos do horror queer, sempre com a apresentação de um curta-metragem local antes de cada exibição, como abertura. Amanhã estarei exibindo os dois primeiros episódios de Sombras da Alma (Eterno Retorno e Persona) antecedendo o filme Raw da Julia Ducournau (uma belezinha do body-horror contemporâneo). Vai ser a primeira exibição de Sombras da Alma 2: Persona, então estou muito contente em encontrar uma audiência para comentar este primeiro corte. Ainda rola um bate-papo posterior sobre produção de filmes de horror no Nordeste, então vai ser muito rico. Aguardo vocês por lá.

[Diário Crítico] Divinos, mas humanos e reais

Crítica do filme Dois Papas (publicada originalmente em junho de 2020)

Crítica do filme

O filme Dois Papas (2019) conta a história do último processo de sucessão do papado da Igreja Católica que pegou o mundo de surpresa na época em que o Papa Bento XVI (nascido Joseph Aloisius Ratzinger) renunciou de sua posição máxima na hierarquia da Igreja Católica (fato que não ocorria desde o ano 1415), dando lugar ao cardeal Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco. Para os que viveram o momento histórico sempre esteve claro que esta transição de liderança se refletiu na popularidade da figura do Papa. O antes conservador e ranzinza Bento XVI dera lugar ao carismático e ousado Papa Chico, primeiro Papa latino-americano. Mas esta é uma visão reducionista que o roteiro assinado por Anthony McCarten dilui muito bem. O roteirista é nome de peso das adaptações biográficas, sendo autor dos roteiros de filmes como A Teoria de Tudo, O Destino de uma Nação e Bohemian Rapsody.

Apesar desta aparente polarização de carisma entre as duas figuras, o filme nos mostra dois religiosos que se respeitam mesmo com suas diferenças. As atuações dos protagonistas nas cenas em que atuam juntos tenta nos apresentar perspectivas mais humanas sobre dois homens que assumiram a posição mais divina da principal instituição cristã do planeta. São homens com passado, anseios, memórias e vivências repletas de dor, dúvidas e devoção.

Anthony Hopkins e Jonathan Pryce interpretam os papas Bento XVI e Francisco

Se por um lado, Ratzinger é visto como um típico alemão frio e insensível, por outro a performance de Anthony Hopkins o desvela como um idoso que tem dificuldades para entender o mundo atual, sua responsabilidade como pontífice e até mesmo as raízes de sua própria fé. Enquanto isso, através da boa performance de Jonathan Pryce, somos apresentados a um cardeal Bergoglio carismático e desenrolado, mas que enxerga seu passado sombrio como uma pedra que o impede de assumir a grande responsabilidade que se revela no horizonte. Diálogos ora bem-humorados, ora filosóficos, mas sempre dinâmicos, nos fazem perceber a dissolução do divino e uma homenagem a humanidade de cada personagem.

A direção é do brasileiro Fernando Meirelles e a Fotografia é do também brasileiro César Charlone, ambos reconhecidos por suas principais parcerias em Cidade de DeusEnsaio Sobre a Cegueira e O Jardineiro Fiel. Com um toque de estilo e assinatura característica de suas filmografias, os dois são responsáveis por pontos altos do filme: a câmera inquieta e a fotografia crua que mesclam a sensação de ficção com documentário; e algumas sequências de flashbacks em preto-e-branco que dão ao filme momentos de elegância precisa de cinema clássico.

Ilustração

A cena escolhida me pareceu apropriada. Toda a indicação de leitura da esquerda para a direita sugere a ideia de sucessão, assim como o ato de cochichar no ouvido, como que o Papa de branco passasse um segredo para seu substituto. Segredo é uma palavra-chave quando se fala da instituição católica. E há também a sugestão de riqueza proposta pelo sofá adornado à esquerda do Papa de branco em contraponto com o vazio à direita do cardeal, indicando humildade.

Sendo esta a primeira imagem da série a que se pretende o projeto Diário Crítico, ela é também um experimento de estilo. A ideia é que todas as próximas ilustrações sigam esta estrutura monocromática e simples.


Esta postagem é uma republicação. O texto foi originalmente publicado no blog Diário Crítico hospedado na plataforma Medium em 2 de junho de 2020.

Dez Maneiras de Morrer, uma coletânea da editora Draco

Um escrito sobre minha participação na nova coletânea da editora Draco organizada pelo Raphael Fernandes

Em agosto do ano passado participei do Festival Internacional de Quadrinhos em Belo Horizonte. Foi uma viagem de algumas semanas, passei um tempo na casa da minha mãe, em Duque de Caxias/RJ e depois peguei estrada com meu irmão para Beagá. Como pular em Minas Gerais têm sido um evento raro nos últimos anos, aproveitei para encher minha agenda por lá: gravei um episódio da minissérie Sombras da Alma durante duas noites, participei de um Duelo de HQs no meio da programação do FIQ e me inscrevi para a Rodada de Negócios promovida pelo Sebrae/MG.

Na rodada de negócios, dentre as muitas editoras que tive a oportunidade de me reunir, pude trocar uma ideia com o Raphael Fernandes da Draco que me deu ótimas dicas sobre formas interessantes de aproveitar as ideias que levei e enriquecer minhas ilustrações com o que há de melhor no meu trabalho. Foi uma conversa breve e interesse que se prolongou por toda a semana do FIQ, dada a coincidência de que eu e o Raphael fomos sorteados como vizinhos nas mesas de exposição ao lado de grandes nomes como a Milena Azevedo (que escreveu Pepengusa) e o Mario Cau (que Ilustrou o belíssimo Anne de Green Gables). Foi meu primeiro FIQ e logo percebi a energia do lugar: uma ambiente muito positivo, todo mundo legitimamente feliz com os encontros e mil parcerias novas surgindo a cada corredor (e boteco… sim, a maioria das reuniões de trabalho se prolongavam aos botecos).

Uma dessas parcerias herdeiras do FIQ foi minha breve participação na nova coletânea da Editora Draco. Um mês depois que voltei a Natal, recebi o convite do Raphael: ele estava concluindo uma turma do curso de roteiro para quadrinhos da Escola de Dragões e os participantes estavam montando esta coletânea com dez histórias sobre morte e maneiras de morrer. Diferente da clássica e divertida animação Dumb Ways to Die, este livro conta com histórias onde as maneiras de morrer não são burras, mas completamente inesperadas e cabulosas.

A belíssima e sombria coletânea, finalmente em minhas mãos

Tive a honra e o prazer de ilustrar o conto Eu pedi numa oração escrito pela Carolina Rubira, a história final de Cândido, um rapaz do interior que quer muito se casar. Superticioso e religioso, a estratégia do jovem envolve comprar um monte de fatias de bolo de Santo Antônio pois diz a crendice que quem encontra uma medalhinha de Santo Antônio no bolo, terá sorte grande no amor. Acontece que o rapaz tem sorte até demais e nas histórias deste livro, meus caros, a sorte e a Morte não perdoam.

Seguem algumas páginas com amostras da ilustração:

Dez maneiras de morrer está entre os lançamentos mais recentes da editora e você pode adquiri-la na loja virtual da Draco. Clique aqui para acessar.

[Galeria] Um quarto assombrado e uma parceria improvável

Um escrito e algumas fotos sobre como ficamos presos em um quarto macabro e acabamos fazendo um filme de terror por lá.

Em janeiro deste ano minha prima me convidou para conhecer um novo estabelecimento da cidade: o Escaping Natal é um daqueles lugares do tipo Escape Room onde você paga para ficar preso num quarto e precisa resolver mistérios e quebra-cabeças para sair de lá antes que o tempo acabe. Claro que ninguém fica preso de verdade, é tudo uma brincadeira, mas confesso que a gente só faltou morrer de ansiedade quando conseguimos resolver todos os desafios faltando apenas alguns segundos para o fim da contagem regressiva. O lugar tem muitas salas com muitos puzzles para se resolver e o que a gente jogou neste dia foi o “Quarto de Any”, um mistério sobre uma menina presa num quarto macabro. Eis uma foto que tiramos no final:

Da esq. para a dir.: Yuki e Dan, Eu e Bia, Sil e Neto.

O que a gente não sabia era que aquela brincadeira ia resultar numa parceria completamente inesperada. Conversando com o Tamil (o proprietário da sala de jogos, um cara empolgado e solícito), expliquei a ele que trabalhamos com Cinema e que aquele espaço completamente sombrio e perfeitamente decorado onde ocorrem os jogos, poderia ser o cenário perfeito para a filmagem de uma cena que estamos gravando para um curta-metragem. Ele curtiu muito a ideia.

O curta em questão é o Par de Olhos, um filme que eu e a Beatriz planejamos juntos há bastante tempo e uma equipe inteira de gente muito competente chegou para ajudar. As primeiras filmagens aconteceram em novembro. Sem querer expôr muito da história, o filme conta sobre uma jovem… presa numa casa assombrada… descobrindo mistérios e abrindo portas… enfim, os clichês que a gente mais gosta e tudo a ver com aquele ambiente que descobrimos.

Pois bem, com algumas organizações e muito planejamento, conseguimos filmar esta cena completamente cabulosa dentro do Quarto de Any. Segue uma galeria com algumas fotos das filmagens da Cena 9 do filme Par de Olhos, que aconteceram no Escaping Natal na última semana de março.

Fiquem também com este vídeo, um pequeno trecho sem edição de um material que gravamos neste dia:

Acompanhem mais novidades sobre o filme Par de Olhos no instagram da Nuvim 7D e da Nav Filmes. Sigam também a galera do Escaping Natal e vão por mim: se você mora em Natal/RN e ainda não foi lá jogar e desvendar mistérios, você tá perdendo tempo.